O Concerto de Aranjuez

Lembra-me que também vai fazer noventa anos, mas a dois de Abril e sorri acanhada, talvez não seja essa a data, porque os tempos eram outros, tudo diferente, recorda ter ouvido contar que o pai, homem sem pressas, demorara a ir ao Registo, e tocado dos copos como de costume deve ter hesitado no assento do nascimento e quando o funcionário lho perguntou disse a data que lhe veio à cabeça. Não é a primeira vez que fala do episódio nem será a última, o recordar parece ser agora a sua razão de existir.

Possui o dom antigo dos que contavam à lareira histórias de milagres, de bruxas, lobisomens, fantasmas nas encruzilhadas e procissões dos mortos. Possui esse dom, mas não esperem dela que fale de casos do sobrenatural, porque nesse particular é venenosa na ironia, suporta mal crendices, abre excepção para a consulta que fez a uma vidente de Mondim de Basto quando ainda namorava, mas confessa que veio tão assustada que embora muitas vezes estivesse à beira de lá voltar não se atreveu, desde aí acha que o melhor é não mexer em certas coisas, nada adianta saber demais. Pode ter sido essa uma das razões porque ficou solteira, embora como ela própria gosta de lembrar nunca lhe tenham faltado namorados e entre as da sua geração ter sido das mais bonitas.

Acha que o destino que lhe calhou foi assim assim, mas se insistirem em perguntar e o curioso lhe merecer confiança às vezes diz que esperava outra vida. Então, a voz num sussurro, desfia o rosário das suas dores e a quem a ouve custa a acreditar que quem tanto sofreu e suportou aguarde o fim com a serenidade dos que conhecem a verdadeira fé. Todavia, não vá o incauto elogiar-lhe a atitude, porque nem ela aprecia cumprimentos nem respeita os que se imaginam com autoridade para julgar, porque então têm defronte uma inesperada anciã, bem outra do que a tímida e reservada que antes falava do pai bebedolas e da sua infância de pobreza.

Mas se nesse momento estiver para aí virada e por razões suas o outro lhe mereça simpatia ou lhe queira dar desconto por ter vivido menos, é capaz então de o surpreender como vidas atrás fez comigo, a meio de uma conversa em que nos tínhamos perdido, ela a esquivar-se, eu a apertá-la com perguntas, fazendo valer a infância que tínhamos partilhado, de repente levantou-se, escolheu um CD, acenou-me que ouvisse calado. O Concerto de Aranjuez dura quase meia hora e Paco de Lucía continua sem igual na guitarra, a surpresa foi abrir os olhos e vê-lo a beijá-la na fotografia.

J. Rentes de Carvalho
Fonte: Correio da Manhã